"nossa sensação normal de sermos uma única pessoa — um ser único —, nosso cérebro é duplo, tendo cada metade sua própria maneira de assimilar conhecimentos,
sua própria maneira de perceber a realidade externa. Poder-se-ia dizer que cada um de nós possui duas mentes, duas consciências,"
Nos animais, os hemisférios cerebrais (as duas metades do cérebro) são essencialmente iguais, ou simétricos, no tocante às funções. No homem, porém, os hemisférios cerebrais desenvolvem-se assimetricamente em termos de função. O efeito mais visível da assimetria do cérebro humano é o uso preferencial, num indivíduo, da mão direita ou esquerda.
Há coisa de cento e cinqüenta anos, os cientistas sabem que a função da linguagem e de aptidões relacionadas com a linguagem localiza-se principalmente no hemisfério esquerdo da maioria dos indivíduos — aproximadamente 98% dos destros e cerca de dois terços dos canhotos.
Há coisa de cento e cinqüenta anos, os cientistas sabem que a função da linguagem e de aptidões relacionadas com a linguagem localiza-se principalmente no hemisfério esquerdo da maioria dos indivíduos — aproximadamente 98% dos destros e cerca de dois terços dos canhotos.
A conclusão de que a
metade esquerda do cérebro se especializa em funções referentes à linguagem foi
possível, principalmente, graças à observação dos efeitos de lesões cerebrais. Verificava-se,
por exemplo, que uma lesão no lado esquerdo do cérebro tendia mais a causar a
perda da aptidão da fala do que uma lesão igualmente grave no lado direito. Uma
vez que a fala e a linguagem são tão intimamente ligadas ao pensamento, o
raciocínio e as funções mentais superiores que diferenciam os seres humanos das
outras criaturas deste mundo, os cientistas do século XIX chamavam o hemisfério
esquerdo de hemisfério dominante ou principal; o hemisfério direito era o
hemisfério subordinado ou secundário. A opinião geral, que prevaleceu até pouco
tempo, era que o hemisfério direito do cérebro era menos desenvolvido, tendo
evoluído menos que o esquerdo — um gêmeo mudo, dotado de aptidões inferiores,
dirigido e conduzido pelo hemisfério esquerdo dotado do dom da palavra. Durante
muito tempo, o estudo neurofisiológico concentrou- se nas funções, desconhecidas
até bem pouco tempo, de um espesso feixe nervoso composto de milhões de fibras
que interligam os dois hemisférios do cérebro. Esse feixe conector, o corpo
caloso, pode ser visto na Fig. 3-3, que é o diagrama da metade de um cérebro
humano. Em virtude do seu tamanho, do tremendo número de fibras nervosas e sua
localização estratégica como conector dos dois hemisférios, sempre se julgou
que o corpo caloso fosse uma estrutura importante. Contudo, por mais estranho que
isso fosse, os informes conhecidos indicavam que o corpo caloso podia ser
inteiramente cortado sem que se observasse qualquer efeito significativo.
Mediante uma série de estudos realizados com animais na década de 1950, principalmente
no Instituto de Tecnologia da Califórnia porRoger W.
Sperry e seus alunos Ronald Myers, Colwyn Trevarthen e outros, verificou-se que
uma das principais funções do corpo caloso era permitir a comunicação entre os
dois hemisférios, facilitando a transmissão da memória e do aprendizado. Além
disto, verificou-se ainda que, quando o feixe conector era cortado, as duas
metades do cérebro continuavam a funcionar independentemente, o que em parte
explicava a aparente ausência de efeitos sobre a conduta e o funcionamento.
Durante
a década de 1960, estudos semelhantes foram feitos em pacientes humanos
submetidos a neurocirurgia. Esses estudos propiciaram novas informações sobre a
função do corpo caloso e levaram os cientistas a reformular sua opinião quanto
às aptidões relativas das duas metades do cérebro humano: ambos os hemisférios
estariam envolvidos no funcionamento cognitivo superior, sendo cada metade
especializada, de maneira complementar, em diferentes modalidades de raciocínio, ambas
altamente complexas. Como esta nova concepção do cérebro humano tem importantes
implicações no que tange à educação em geral e, em particular, no aprendizado
do desenho, descreverei de modo sumário certas pesquisas conhecidas como
"estudos do cérebro bipartido". Essas pesquisas foram realizadas principalmente
no Cal Tech por Sperry e seus alunos Michael Gazzaniga, Jerre Levy, Colwyn
Trevarthen, Robert Nebes e outros. Os estudos concentraram-se em torno de um
pequeno grupo de indivíduos que passaram a ser chamados de pacientes de comissurotomia, ou de
cérebro "bipartido". Eram pessoas que tinham sido altamente afetadas
por ataques de epilepsia envolvendo ambos os hemisférios. Como último recurso,
depois que todos os outros tratamentos tinham fracassado, os ataques que se
transmitiam de um a outro hemisfério, tornando os pacientes incapazes, foram controlados
mediante uma operação, feita por Phillip Vogel e Joseph Bogen, que consistia no
corte do corpo caloso e respectivas comissuras ou junções, isolando assim um
hemisfério do outro. A operação produziu o efeito esperado: os ataques
desapareceram e os pacientes recuperaram a saúde. Apesar da natureza radical da
cirurgia, a aparência externa, as maneiras e a coordenação motora dos pacientes
pouco foram afetadas e, para um observador comum, o comportamento diário dos
mesmos exibia pouca mudança.
Subseqüentemente,
o grupo do Cal Tech trabalhou com esses pacientes numa série de testes
engenhosos e sutis que revelaram as funções separadas dos dois hemisférios. Os
testes propiciaram indícios novos e surpreendentes de que cada hemisfério, em
certo sentido, percebe sua própria realidade — ou melhor, percebe a realidade à
sua maneira. A metade verbal do cérebro — o hemisfério esquerdo — predomina
quase sempre, tanto em indivíduos de cérebro intacto quanto em pacientes de
cérebro bipartido. Mas, utilizando métodos engenhosos, o grupo do Cal Tech
testou o hemisfério direito dos pacientes, separado do esquerdo, e verificou
que essa metade direita, desprovida do dom da fala, também recebe sensações,
reage a elas e processa informações por conta própria. Nos cérebros em que o
corpo caloso permaneceu intacto, a comunicação entre os hemisférios funde ou
reconcilia as duaspercepções,
preservando assim a sensação de sermos uma única pessoa, um
ser
unificado.
Além
de estudarem a separação, entre os lados direito e esquerdo, da experiência
mental interior criada pelo método cirúrgico, os cientistas examinaram a
maneira diferente pela qual os dois hemisférios processam informações. Surgiram
novos indícios de que a modalidade de funcionamento do hemisfério esquerdo é
verbal e analítica, ao passo que a do hemisfério direito é não-verbal e global.
Outros indícios encontrados por Jerre Levy em seus estudos de doutorado
demonstraram que a modalidade de processamento utilizado pelo cérebro direito é
rápida, complexa, configuracional, espacial e perceptiva — um processamento que
não só é diferente mas comparável em complexidade ao processamento verbal e
analítico do cérebro esquerdo. Além disto, Levy descobriu que os dois modos de
processamento
tendem
a interferir um com o outro, impedindo um desempenho máximo; e a cientista sugeriu
que isto talvez explique o desenvolvimento da assimetria na evolução do cérebro
humano — como meio de manter as duas modalidades diferentes de processamento em
dois hemisférios diferentes. À base dos estudos de pacientes com cérebro
bipartido, os cientistas chegaram gradualmente à conclusão de que ambos os hemisférios utilizam modalidades
cognitivas de alto nível, as quais, embora diferentes, envolvem pensamento, raciocínio
e complexo funcionamento mental. Nos últimos dez anos, depois que esta concepção
foi inicialmente apresentada por Levy e Sperry, os cientistas descobriram inúmeros
indícios que a apoiavam, não só em pacientes com lesões cerebrais, mas também
em indivíduos com cérebros normais e intactos.
Alguns
exemplos dos testes especialmente elaborados para uso com pacientes de cérebro
bipartido talvez sirvam para ilustrar a realidade separada percebida por cada
hemisfério e a modalidade especial de processamento de cada um. Em um dos
testes, duas imagens diferentes eram projetadas durante um breve instante numa
tela, sendo que o paciente de cérebro bipartido tinha os olhos fixos num ponto médio,
de modo que lhe seria impossível examinar ambas as imagens. O resultado era que
cada hemisfério recebia uma imagem diferente.
A imagem de uma colher no lado esquerdo da
tela ia para o hemisfério direito; a imagem de uma faca no lado direito da tela
ia para o lado esquerdo, o lado "verbal", como mostra a Fig. 3-4.
Quando se indagava ao paciente o que ele tinha visto, as respostas diferiam. Se alguém lhe pedia que
ele desse o nome do que
havia sido projetado na tela, o hemisfério esquerdo, confiante em sua
capacidade de articular palavras, fazia com que o paciente dissesse
"faca". Em seguida, pedia-se que o paciente tirasse detrás de uma
cortina, com a mão esquerda (hemisfério direito), o objeto que tinha sido
projetado na tela. De um grupo de objetos que incluía uma colher e uma faca, o
paciente retirava a colher. Se o encarregado da experiência pedia ao paciente
que identificasse o objeto que estava em sua mão por trás da cortina, ele
parecia confuso durante um instante e, em seguida, dizia: "uma faca".
O hemisfério direito, sabendo que a resposta estava errada, mas não sendo
dotado de palavras suficientes para corrigir o hemisfério esquerdo falante,
continuava o diálogo fazendo com que o paciente abanasse a cabeça de um lado
para outro, em silêncio. A essa altura, o hemisfério esquerdo
"verbal" indagava em voz alta: "Por que estou abanando a
cabeça?" Em outro teste, que demonstrou que o cérebro direito é mais
eficiente na solução de problemas espaciais, dava-se ao paciente uma série de
peças de madeira que ele deveria juntar para formar determinada configuração.
As tentativas que ele fazia com a mão direita (hemisfério esquerdo) falhavam continuamente.
O hemisfério direito teimava em ajudá-lo. A mão direita logo procurava afastar
a mão esquerda; e, finalmente, o paciente teve de sentar-se sobre a mão esquerda
para que ela parasse de interferir com o quebra-cabeça. Quando os cientistas finalmente
sugeriram que ele usasse ambas as mãos, a mão esquerda, "inteligente"
em questões espaciais, teve de afastar a mão direita, "burra" em
questões espaciais, a fim de evitar que esta última interferisse. Em
decorrência destas extraordinárias descobertas, realizadas nos últimos quinze
anos, sabemos hoje que, a despeito de nossa sensação normal de sermos uma única
pessoa — um ser único —, nosso cérebro é duplo, tendo cada metade sua própria
maneira de assimilar conhecimentos, sua própria maneira de perceber a realidade
externa. Poder-se-ia dizer que cada um de nós possui duas mentes, duas
consciências, mediadas e integradas pelo feixe de fibras nervosas coneetoras
situado entre os dois hemisférios. Ficamos sabendo que os dois hemisférios são
capazes de trabalhar em conjunto de várias maneiras. Às vezes os dois cooperam
um com o outro, contribuindo com suas aptidões especiais e assumindo aquela
determinada parte da tarefa mais adaptada à sua modalidade de processar
informações. Outras vezes, os hemisférios podem funcionar separadamente, com
uma das metades "ligada" e a outra mais ou menos
"desligada". E, ao que parece, as duas metades podem também entrar em
conflito: uma delas tenta fazer aquilo que a outra "sabe" ser mais
capaz de fazer. Além disto, talvez cada hemisfério tenha uma maneira de manter
certos conhecimentos fora do alcance do outro. Talvez, como diz o ditado, a mão
direita realmente não saiba o
que a mão esquerda está fazendo.
Retirado do livro : Desenhando com o Lado Direito do Cérebro (Betty Edwards)
Retirado do livro : Desenhando com o Lado Direito do Cérebro (Betty Edwards)
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